02 abril 2009

O DILÚVIO A QUALQUER PREÇO

Resolvi postar isso aqui, por conta de um fato ocorrido na minha aula hoje.

Abraços a todos, Paulo.

O dilúvio a qualquer preço

Roberto Takata (*)

"Achados arqueológicos no Mar Negro podem confirmar história de Noé" – CNN,13/9/00 [1]

"Oceanógrafo diz ter encontrado provas do dilúvio bíblico" – O Globo, 14/9/00 [2]

"A prova do dilúvio, no fundo do Mar Negro?" – Jornal da Tarde, 14/9/00 [3]

"Dilúvio bíblico será confirmado?" – Jornal da Tarde, 15/9/00 [4]

"Exploradores investigam objeto que naufragou há 7.500 anos" – O Estado de S. Paulo, 18/9/00 [5]

Esses são os títulos de notas e matérias publicadas na internet, em português, sobre a descoberta de restos de uma construção no fundo do Mar Negro a cerca de 100 metros da superfície. Casas e prédios são feitos geralmente em terrenos firmes e secos – tanto mais verdadeiro para as construídas com madeira e barro, como parece ser o caso. Isso deve indicar então que aquele local já esteve exposto ao ar.

Alguns anos antes, foi-se especulado que o Mar Negro ter-se-ia formado por uma rápida inundação de um lago de água doce causada pela elevação do nível do Mar Mediterrâneo que recebia um grande aporte de água proveniente do derretimento das geleiras há cerca de 7 mil anos [6a,b].

Lendas e fatos

A descoberta dá um bom respaldo à hipótese. Mas o que isso tem a ver com o Dilúvio Universal? No corpo dos textos é que vamos saber que os autores da descoberta acham que a inundação pode ter inspirado (destaquemos isso: inspirado) a lenda da Arca de Noé – a quantidade de água transbordada e sua velocidade deveriam ser impressionantes, estima-se que o volume que chegava ao lago fazia com que sua margem avançasse cerca de 1,6 km por dia, terminando por cobrir mais de 100 mil km2 de terreno anteriormente seco (o Mar Negro tem hoje cerca de 435 mil km2 de superfície) – uma vazão de 30 a 300 vezes das Cataratas do Iguaçu.

Porém, apenas em um jornal estrangeiro ficamos sabendo que pode também ser a raiz das narrativas sobre uma inundação na lenda babilônica de Gilgamesh [7].

O feito não prova e nem dá indícios de uma lenda específica nem mesmo de uma família de lendas – ao menos não em suas formas próprias –, mas o que faz é fornecer um indício de base real a partir da qual essas lendas podem ter florido. A diferença entre as duas coisas é sensível. E mesmo no texto isso não fica muito claro: não se referem à história do Dilúvio como lendas ou mitos, mas como "história bíblica de Noé", "o relato da Arca de Noé", "[o] dilúvio e [a] história de Noé relatados na Bíblia", "o dilúvio universal citado pela Bíblia" e por aí vai. Isso pode confundir, levado a se acreditar que se trata mesmo de uma confirmação do Dilúvio como um fato. Ou era disso mesmo que se tratava?

Teoria particular

Abrem-se aspas para o explorador PhD. Robert D. Ballard, que anunciou a descoberta (o mesmo que encontrou antes os restos do Titanic): "Estamos pondo a teoria à prova e até agora não encontramos nenhum furo. Continuaremos a coletar dados." [1] Em [5], pequenas modificações. Não fica claro se a teoria a que se refere é a inundação do Mar Negro pelo Mediterrâneo devido ao degelo ou à ligação com as lendas bíblica e babilônica.

Se for o segundo caso, há alguns sérios problemas, especialmente em relação à narrativa bíblica, de localização (a inundação se deu no Mar Morto, e não no Oriente Médio – muito menos em caráter global) e de causa (transbordamento do mar, e não uma chuva torrencial). Caso tomemos apenas como fonte de inspiração, esses problemas desaparecem ou ao menos amainam-se – sobretudo porque a narrativa bíblica foi compilada cerca de 5 mil anos depois do evento.

Não é intenção minha aqui desmerecer as histórias da Bíblia ou dos mitos da antiga Babilônia, mas apenas chamar a atenção para os problemas acarretados por uma divulgação afoita – não sei se isso se deveu a um anúncio "bombástico" dos pesquisadores ou a uma compreensão enviesada dos jornalistas pouco afeitos ao tema ou a um atropelo na busca de explorar o lado mais chamativo – o que não seria de todo modo exclusividade da imprensa brasileira, e.g. Washington Post [8], embora oNew York Times [7] e mesmo a CNN em sua versão em inglês [9] tenham optado pelo comedimento na chamada – (ou à conjugação desses fatores).

Do que acompanhei pela internet, apenas o Estadão, entre os brasileiros, foi mais contido no título, mas não foi mais feliz. Terá sido confusão entre ir a pique e ser de pau-a-pique?

Por pouco não passa batido o real potencial do achado: uma janela para a vida dos antigos habitantes da região e, de quebra, um apoio a uma teoria particular sobre a origem do Mar Negro – ofuscado que foi pela suposta conexão com as lendas de terríveis inundações.

Referências

[1] <http://cnnemportugues.com/2000/tec/09/13/noe/index.html> 
[2] <www.globon.com.br/arquivo/plantao/20000914/inoce13.htm> 
[3] <www.jt.com.br/editorias/2000/09/14/int826.html>
[4] <www.jt.com.br/editorias/2000/09/15/int836.html> 
[5] <www.estado.com.br/editorias/2000/09/18/ger317.html> 
[6a] Ryan WBF, Pitman WC, Major CO, Shimkus K, Moskalenko V, Jones GA, Dimitrov P, Gorur N, Sakinc M, Yuce H 1997 – An abrupt drowning of the Black Sea shelf. Marine Geology 138: (1-2) 119-26. 
[6b] Ryan W & Pitman WC 1999 – Noah's Flood: the new scientific discoveries about the event that changed history. Simon & Schuster. 319 págs. 
[7] "Possible Pre-Flood Artifacts" – The New York Times, 13/9/00 –<www.nytimes.com/2000/09/13/science/13BLAC.html> 
[8] "Black Sea Artifacts May Be Evidence of Biblical Flood" – Washington Post, 13/9/00 <www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A59806-2000Sep12.html>
[9] "Undersea explorer finds new evidence of great flood" – CNN.com, 13/9/00 –<www.cnn.com/2000/NATURE/09/13/great.flood.finds.ap/index.html>

(*) Mestrando em Biologia no Instituto de Biociências da USP

Paulo Adriano Rocha
NINGUÉM PODE TE AMAR COMO JESUS TE AMA!
http://paulo2907.multiply.com.
http://abibliaeeu.blogspot.com
www.jograis.oi.com.br

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